A farmacologia pode ser definida como o estudo dos efeitos das substâncias químicas sobre a função dos sistemas biológicos. O profissional farmacêutico, aquele que é formado no curso de Farmácia, e, que tem profundo conhecimento sobre a farmacologia, apesar da grande importância no contexto do tratamento em saúde de pacientes, ainda é visto como aquele que fica restrito atrás de um “balcão de Farmácia”. No entanto, sua função e importância vai muito além e em conjunto com outros profissionais de saúde pode ajudar na promoção e educação em saúde de pacientes. Uma área ainda pouco falada é sobre o quanto o exercício físico pode afetar o tratamento medicamentoso. Isso sem dúvida exige um maior diálogo do profissional farmacêutico com o de educação física, já que para a grande maioria das doenças as pessoas ingerem medicamentos e a prática de exercício físico é recomendada.
Com o desenvolvimento crescente de novos medicamentos, é prática comum para a indústria farmacêutica mensurar os parâmetros farmacológicos da ação de um fármaco/droga/medicamento/substância. Isto envolve o estudo da absorção, distribuição, propriedades metabólicas, excretoras e toxicológicas. Os testes geralmente são feitos em condições não estressantes e em repouso. No entanto, isso não mostra necessariamente a visão completa, pois há um conhecimento crescente sobre os efeitos do exercício físico/prática esportiva podem ter na farmacocinética de alguns medicamentos, ou seja, o que o corpo faz com o fármaco e o seu movimento dentro, através e fora do corpo bem como seu processo de sua absorção, biodisponibilidade (proporção da substância que passa para a circulação sistêmica após administração oral e quanto chega ao local de ação), distribuição (saída da droga para os diferentes sistemas do organismo), biotransformação (alteração que a droga sofre dentro do organismo) e excreção (saída da droga do organismo).
A crescente popularidade dos eventos esportivos levantou a questão da possível interação entre exercício físico e a farmacocinética dos medicamentos. Além disso, visto que hoje em dia muitos pacientes com diversas doenças/morbidades são estimulados a adotar um estilo de vida fisicamente ativo e saudável, a questão da influência do exercício físico na farmacocinética dos fármacos torna-se cada vez mais relevante. Como o exercício físico influencia um grande número de fatores fisiológicos que também determinam a farmacocinética das drogas, incluindo hemodinâmica, metabolismo, pH, temperatura e função gastrointestinal, pode-se esperar que tenha efeito nos parâmetros farmacocinéticos dos fármacos. Abaixo apresentamos alguns exemplos das possíveis interações entre exercício físico vs. fármacos propostos pela literatura científica da área:
-O exercício físico reduz o fluxo sanguíneo esplâncnico, mas possíveis alterações na absorção de medicamentos administrados por via oral parecem ser de menor importância clínica.
-A absorção nos locais de aplicação intramuscular, subcutânea e transdérmica pode ser acelerada pelo exercício físico, possivelmente causando consequências prejudiciais em pessoas com diabetes tratados com insulina.
-A taxa de absorção de insulina, aumenta significativamente depois de injeções subcutâneas nos músculos em atividade, mas não nos músculos que não estão diretamente envolvidos com o exercício físico. Com isso, é preciso ficar atento com o momento de sua administração.
-O exercício físico, ou numa perspectiva mais ampla o esforço físico, aumenta a frequência e a profundidade da respiração, aumentando assim as trocas alveolares. Isto pode afetar a farmacocinética dos medicamentos inalatórios.
-O exercício físico aumenta o fluxo sanguíneo muscular e, por exemplo, a ligação da digoxina (um fármaco utilizado no tratamento de problemas cardíacos) às estruturas musculares, com queda simultânea da concentração sérica de digoxina.
-A redução do fluxo sanguíneo para o tecido adiposo e outros tecidos inativos pode retardar a distribuição de alguns fármacos que são armazenados ou removidos por esses tecidos.
-A mudança da posição supina para a vertical pode afetar a distribuição de um medicamento.
-O exercício físico reduz o fluxo sanguíneo no fígado e a desativação de drogas com metabolismo hepático limitado pelo fluxo (de alta depuração – parâmetro que integra todos os fenômenos farmacocinéticos da metabolização e excreção de um fármaco e indica mais significativamente o tempo de ação dele em seus orgânicos), como nitratos (classe farmacológica que provoca vasodilatação sistémica através do relaxamento do músculo liso) e lidocaína (indicada para produção de anestesia local ou regional por técnicas de infiltração como a injeção percutânea).
-O metabolismo de fármacos com capacidade limitada (baixa depuração), por exemplo, antipiréticos (atuam na diminuição do estado febril), diazepam (classe dos benzodiazepínicos possuindo propriedades ansiolíticas, sedativas, miorrelaxantes, anticonvulsivantes e efeitos amnésicos) e amobarbital (tem a função de aliviar a ansiedade, sendo terapia de curto prazo para a insónia e induz sedação pré-anestésica), aparentemente não é influenciada pelo exercício físico.
-O fluxo plasmático renal, a taxa de excreção de urina e o pH da urina também são reduzidos pelo exercício físico. Esta é uma razão importante pela qual os níveis séricos de drogas eliminadas pelos rins aumentam durante o estresse físico.
-As alterações na absorção parenteral e no volume de distribuição de algumas drogas causadas pelo exercício físico, bem como o tempo de meia-vida (aquele necessário para que a concentração plasmática de determinado fármaco seja reduzida pela metade) curta das drogas, são propriedades que resultam em faixa/resposta terapêutica (extensão de tempo em que a concentração do medicamento oferece o efeito desejado) e faixa/resposta tóxica (overdose acidental ou intencional refere‑se a reações tóxicas graves, muitas vezes nocivas e algumas vezes fatais de um medicamento) alterada naquelas drogas com faixa terapêutica estreita.
-O exercício tem pouco efeito sobre o esvaziamento gástrico até o atingir a intensidade que corresponda a 70% do consumo máximo de oxigênio (VO2máximo – maior quantidade de oxigênio que pode ser captada do ar ambiente, transportada e utilizada pelas células durante a atividade física). Neste ponto, o esvaziamento se torna mais lento e a absorção de drogas pode ser prejudicada.
-O tempo de transito intestinal diminui como resultado treinamento físico. Isto pode indicar que a absorção de drogas no trato gastrintestinal esteja diminuída.
-A diminuição no tempo de transito intestinal durante o exercício físico pode não proporcionar o tempo adequado para a absorção porque as drogas poderiam se mover através do trato gastrintestinal numa taxa mais rápida.
-O exercício físico reduz o tempo de transito intestinal. Este efeito é importante para aquelas drogas as quais são primariamente absorvidas do intestino.
-O exercício pode reduzir ou aumentar a taxa de absorção de drogas no intestino. Isto irá depender das propriedades físico-químicas da droga em questão. Por exemplo, as drogas lipofílicas têm sua taxa de absorção reduzida no trato gastrintestinal com o exercício físico.
-A maior parte do sangue é deslocada para os músculos em atividade e para a pele durante o exercício físico. As drogas administradas pelas vias subcutânea, intramuscular ou transdermal podem ter alterada sua farmacocinética se forem dadas durante ou próximo da execução do exercício físico.
-Exercitar-se com um adesivo transdermal de nitroglicerina produz um aumento na concentração plasmática da droga durante e em seguida a séries de exercício físico. Isto provavelmente ocorre por causa do aumento do fluxo sanguíneo para a pele durante o exercício físico.
-Mudanças na temperatura e no fluxo sanguíneo para a pele têm mostrado efeitos sobre a absorção de nitroglicerina e nicotina durante o exercício físico, quando da aplicação de adesivos transdermais. O exercício físico promove o aumento do fluxo sanguíneo e da temperatura da pele favorecendo a absorção das duas drogas o que foi observado pelo aumento da concentração plasmática de ambas.
-Com o envelhecimento crescente da população é preciso ficar atento quanto a relação/interação fármaco vs. exercício físico nas pessoas idosas. Os idosos são geralmente considerados diferentes dos jovens em termos de resposta aos medicamentos e isso se aplica particularmente às diferenças quantitativas. A absorção de substâncias ativamente transportadas pode, de fato, ser diminuída em idosos.
-Se ocorrerem efeitos adversos da droga durante ou após o exercício físico, uma alteração na farmacocinética da droga relacionada ao exercício físico deve ser seriamente considerada como uma possível causa.
O exercício físico pode influenciar a taxa e a extensão da absorção, distribuição, metabolismo e excreção das drogas pela mudança de alguns fatores fisiológicos. O efeito do exercício físico na absorção de drogas depende da via de administração. Em adição, o efeito sobre a distribuição de drogas depende principalmente da extensão da distribuição das drogas. Entretanto, outros fatores também podem estar envolvidos na distribuição de drogas durante o exercício o que faz esta relação ser mais complicada. O exercício físico pode diminuir o clearence (quantidade de um fármaco removido do organismo por unidade de tempo) das drogas altamente extraídas as quais podem consequentemente conduzir ao aumento da concentração plasmática. Por outro lado, o exercício físico pode aumentar o clearence corporal total de algumas drogas pelo aumento de sua excreção biliar conduzindo à diminuição da concentração plasmática. A concentração plasmática das drogas primariamente eliminada pelos rins aumenta devido à diminuição da excreção renal durante o exercício.
De forma geral, a absorção de drogas nos tecidos que estão participando ativamente do exercício físico podem aumentar, enquanto que a absorção das drogas pelos tecidos inativos podem ser reduzidas durante o exercício físico. Sendo assim, pacientes e profissionais de saúde devem estar cientes de que o exercício físico pode afetar a farmacocinética e a maneira como os medicamentos devem funcionar no organismo e assim realizar os ajustes necessários quanto seu consumo no decorrer do dia e rotina.
Fontes:
Lenz TL, Lenz NJ, Faulkner MA. Potential interactions between exercise and drug therapy. Sports Med. 2004; 34(5):293-306.
Persky AM, Eddington ND, Derendorf H. A review of the effects of cronic exercise and physical fitness level on resting pharmacokinetics. Int J Clin Pharmacol and Therap. 2003; 41: 504-516.
Khazaeinia T, Ramsey AA, Tam YK. The effects of exercise on the pharmacokinetics of drugs. J Pharm Pharm Sci. 2000 Sep-Dec;3(3):292-302.
Ylitalo P. Effect of exercise on pharmacokinetics. Annals of Medicine. 1991; 23: 289-294.
van Baak MA. Influence of exercise on the pharmacokinetics of drugs. Clin Pharmacokinetic. 1990; 19: 32-43.